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sábado, 30 de outubro de 2010

Criar 3

Naturalmente, pensa o observador, a vida daquele professor deve ser uma vida pobre de espírito. De manhã, todos os dias, deve chegar a seu departamento, desértico; debruçar-se sobre o computador, checar seu email, também desértico; ocupar-se, até a próxima aula, a preparar a aula seguinte. Quando chega seu período áureo - a aula -, põe em prática todo o seu planejamento rigorosamente. Dados o fervor e a exclusividade a essa ocupação, a aula é bem planejada e executada, apesar de seu eterno desgosto com seus alunos mais desvairados, que só são assim classificados devido à alta esperança de retorno que o professor espera de todo o alunato.

Ao término da aula, já lhe assombrando mansamente o pensamento da solidão, surge-lhe em frente um aluno querendo lhe falar.

- Professor, sua aula é completa; é a única da qual sinto que aprendi alguma coisa.

Pego de surpresa, o professor, recatado, desvia o olhar, como lhe é costumeiro, e agradece com um lacônico e sem-graça, porém pleno e sincero, "obrigado".

Esse acontecimento, nem tão poético ou relevante a olhos comuns, alivia de alguma forma nosso professor, pelo menos momentaneamente. Agora, ele poderá dividir o tempo da solidão com a alegria do reconhecimento de seu trabalho.

Segue agora a casa, onde sabe que ninguém o espera; onde o 'doce', do 'lar, doce lar' há muito azedou-se e tornou-se intragável. O observador percebe que o professor reluta insistentemente em voltar a seu lar.

Como se antenado às percepções do observador, o professor também percebe que não quer voltar a casa. Mas se não for esse o destino, para onde iria? Que lugar do mundo moderno poderá abrigar ao mínimo sossegadamente uma pessoa tão peculiar e recatada como nosso professor? Se existe tal lugar, provavelmente haverá outras pessoas circulando, comendo, bebendo, conversando, fumando. Que pessoas poderão suportar nosso professor?

Ruma a casa. Resigna-se.

Por dois segundos. Desvia do caminho natural e cai em vias que, à primeira vista, lhe são estranhas.

Criar 2

Está à sua vista uma moça com um caderno no colo, também sentada num banco público igual ao seu. Imagina, agora, o que ela deverá estar fazendo com o caderno aberto e caneta em punho. Dado o local onde se encontram, notório centro de inteligência das ciências exatas, é razoável esperar que a moça esteja se debruçando sobre algum problema da física; mas o observador prefere supor que ela esteja descrevendo a imaginação, assim como ele. Supõe, também, que ela está escrevendo sobre ele, numa metalinguagem infinita, como se seus pensamentos estivessem em ressonância. No ápice da criação, porém, chega à moça uma outra pessoa, que insensivelmente desbarata todo o processo criativo do observador e da observadora.

Distraído com a interrupção, o observador percebe passando-lhe próximo um indivíduo cuja fisionomia não lhe nega: é professor. Percebe em seu andar e seus olhos uma solidão profunda: olhar escorregadio e evasivo; andar descompassado e apressado. Imagina agora como será a vida desse indivíduo.

Criar 1

Sentado num banco público, observa as pessoas. Percebe variados cortes de cabelo, diferentes portes físicos, diferentes amores por descobrir.
Próximo, ali, à frente, um casal se rosna. A moça se deita sobre as pernas do rapaz, que repousa a mão direita no quadril da amada. Não é possível ver-lhes os rostos, mas isso não é necessário. A visão, por vezes, polui o imaginário, enodoa a criatividade. O observador, então, prefere desviar o olhar.

Quando percebe que está esperando o nada, sorri candidamente e pensa: "E se o nada nunca ocorrer?". Enquanto o nada não ocorre, distrai-se com as coisas, tão próximas de nada, que acontecem à sua volta.