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segunda-feira, 6 de abril de 2009

Valseando a vida

E a vida se constrói nos mínimos detalhes. A criança que se esperneia nos braços da mãe, daí vem o estridente choro que só a afinada garganta de um pré-jovem consegue executar. E o bar por perto, no qual se lê: Temos coroas. Me pergunto se a prevaricação já chegou à terceira idade, provavelmente não, deve ser somente uma nova mutação das palavras. Ah, as palavras, tridimensionais como ninguém, versáteis, amorfas, mas ao mesmo tempo limitadas pelo pensamento. Palavras são papagaios do pensamento, já disse Saramago.

Num alpendre daqueles anos-20, um casal discute o relacionamento, isso nos é tão inócuo, tão indiferente, como todo o ambiente que nos circunda no-lo é. E se vê um rosto. Aquele rosto. De onde mesmo? Já vi esse rosto. E se passa todo o tempo descuidado a se tentar se lembrar, até que se passa outro rosto: de quem mesmo? Mas essa rotina nos inflige danos irreparáveis... Já um restaurante exibe um cartaz: self service sem balança. Inteligência da nova burguesia, assim se poupa o cliente de se espantar com o peso do prato, finjo que não sei, finjo que não vi, então não me repreendo.

A tinta dos muros é ofuscada pelo brilhante-ao-sol spray das pichações. Ué, aquele piche não parece um hiragana?

E parece ser inevitável: por mais feio que se seja, por mais repugnante que se seja, sempre há alguém que lhe segue com o olhar, como se percebêssemos uma perturbação eletromagnética que se faz presente no exato momento em que um olhar nos é direcionado. Ah, aquelas graciosas moças que fazem do concreto sua passarela, que nos desviam do trânsito, que nos arrebatam uma saudade do último amor, ou do presente amor, ou uma vontade de um futuro amor.

Passa um carro auto-escola. Uma só pessoa no carro. Inegavelmente, é uma auto-escola por definição. Desviamo-nos da floresta de arranha-céus, mera imitação humana da natureza das sequoias. Essas árvores de cimento, tijolo, vidro, concreto, plástico, aço, ferro, petróleo, aquecimento global, efeito estufa, poluição. Adiante, num poste, se lê: Dor de coluna agora tem tratamento. Com certeza um poste não é um bom lugar para se expor a descoberta de um tratamento para a avassaladora destruição do humor a que a coluna nos subjuga.

Ali, sempre ali, àquela hora, se senta uma charmosa moça. Com suas pernas cruzadas cobertas com uma discreta calça lisa, cabelos negros e lisos amarrados sobrepostos ao harmonioso colo, que se deixa sublevar com o inspirar, expirar, inspirar, expirar, parece à espera de alguém em quem possa se amparar, se afagar, se deixar, se sorrir. Subitamente, não tão longe dali, a luz de um sorriso se propaga, como um candeeiro numa obscura caverna, sua alva tez agora traz contornos de certeza, finalmente o arrebatador da solidão lhe chegava, sua beleza resplandece como Jaci em límpidas e diáfanas águas, faz-se um espetáculo neste observador, que só contempla esse corriqueiro viver. E, a distância dos holofotes, a pequena vida acontece.

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